sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

“A especificidade do vinho açoriano inserido nas zonas classificadas ou protegidas”


Por: António Mesquita Montes*


António Mesquita Montes

Prendem-me ao Pico e aos Biscoitos (ilha Terceira), a mim que venho do Douro, laços de muita amizade que prezo como valor sagrado não só de pessoas, mas ainda de regiões que perseguem, de há muito, a sua sina de sobreviverem de uma viticultura já reconhecida como heróica, forma ímpar que encontrámos, nós lá e vós aqui, de desbravar a Natureza, fazendo terra de simples rocha que ela nos deu, numa simbiose perfeita de a ela acrescentarmos paisagens ímpares, muita beleza e ainda o prazer de nos deliciarmos com néctares divinos.

Darmos, todos nós, o nosso melhor contributo na defesa destas vitiviniculturas é lema central de qualquer das nossas Confrarias e também por isso aqui estamos.

Pelo vinho que a elas produzem, “fruto da videira e do trabalho do homem”, com que nos altares se consagra Deus e, às nossas mesas, se estreitam os laços de amizade já feitos ou que ali, com Ele presente, se passam a partilhar.

Mas ainda pelos homens, os viticultores, rudes por natureza, mas que com o seu suor e quanto sacrifício que se renova ano após ano, numa sequência interminável de décadas das suas vidas, têm vindo a transmitir, de geração em geração, a cultura da vinha.

Este excerto de António Barreto conta-nos, bem melhor que eu próprio, a epopeia dos Viticultores: “Galgaram montes, quebraram a rocha, fizeram a terra, levantaram muros, seleccionaram castas, plantaram videiras. Sofreram o oídio, a filoxera, o míldio e a maromba, reconheceram tudo várias vezes…

Trataram das vides melhor que das próprias vidas. Trataram das videiras como trataram os filhos e as adegas como se fossem as suas casas. Podaram, enxertaram, cavaram e escavaram, redraram e nunca um desses trabalhos foi simples ou fácil. Vindimaram a cantar, para esquecer o cansaço…levaram as uvas às costas, em cestos de quatro ou cinco arrobas em sítios onde não vão carros de bois, onde se desce para o precipício e se sobe para o inferno. À noite pisaram as uvas, cortaram lagaradas, num dos mais violentos trabalhos de toda a agricultura que os álbuns de turismo ou os citadinos filhos de proprietários acham tão pitoresco, mas que só se aguenta porque é preciso viver, porque uma posta de bacalhau cru e um caneco de aguardente aquecem o corpo e porque as mulheres, em frente dos lagares, aquecem as almas”.

Aqui nos Açores, tal como no Douro, bem se pode dizer desta viticultura que ela não é tanto uma actividade económica, mas muito mais o resultado da tradição e da cultura de um povo que herdou dos seus antepassados a obrigação de legar aos seus descendentes um Património que é o orgulho desta Região.

Com quanto sacrifício e tão pouco proveito meu Deus, bem patente neste pequenino excerto que vos vou ler: “… enquanto de vindimava não se abandonava um único bago que escorregasse do cesto, tal como de coisa sagrada se tratasse, com os dedos calosos ia-se-lhe no encalço… Conta-se mesmo de Custódio, a quem um bago de uva lhe caiu numa abertura no cimo de um través que ficou a vê-lo e foi tirando pedra atrás de pedra para o apanhar, enquanto o bago mais rolava para o seu interior, o Custódio desmanchou o “través” todo, mas recuperou o bago – não desistir, é apanágio do Homem do Pico”.


Currais de vinha na ilha do Pico

“Em volta de um grande vinho – e o nosso “verdelho” é indubitavelmente um deles – tece-se uma certa mística como se a sua qualidade de excepção não pudesse resultar apenas das práticas corrente postas no seu nascimento e percurso vital”.

“E se é certo que o vinho tem alma, a do “Pico” emana com certeza da madre do seu vulcão”.

“Ver brotar as cepas da lava faz pensar em algo de mágico ou milagroso e só se sente a invulgar classe das uvas quando se desvenda o segredo da sua apuradíssima maturação que a mesma lava propicia”.

“Um vinho desta categoria não foi criado parta bebedores, mas sim para entendidos e, como tal, terá a sua perenidade assegurada, porque a raridade não tem preço.

Daqui se poderia dizer, como Bianchi de Aguiar disse do Douro, “a candidatura da paisagem cultural evolutiva viva…evidencia três aspectos principais: o carácter único desta relação numa situação de escassez dos elementos naturais – água, solo e o território acidentado; o carácter sábio desta relação resultante de um conhecimento profundo das culturas mediterrânicas e da sua adaptação *a escassez e adversidade dos elementos naturais onde a vinha é a cultura por excelência; e a diversidade da arquitectura vernacular”.

(continua)

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