domingo, 20 de fevereiro de 2011

“A especificidade do vinho açoriano inserido nas zonas classificadas ou protegidas” (2)


(continuação do anterior)

Por: António Mesquita Montes*


A Confraria dos Enófilos da  Região Demarcada do Douro durante uma visita efectuada à ilha de São Miguel

E, tal como Portovenere Cinque Terre, o Alto Douro Vinhateiros, ou o Pico, podem invocar a dimensão milenar da transformação de uma deserto povoado de fragas e arbustos em “pais Vinhateiro” intenso e pujante.

Quem lê, Tomaz Duarte Júnior que atrás já citei, fica com a exacta noção do que foi a epopeia desta viticultura no tempo, nos métodos usados da viticultura e na vinicultura, na terminologia nela usada, nas dependências dos agricultores, etc., e não pode deixar de reconhecer –lhe uma perfeita paridade com as Denominações de Origem Históricas, sejam elas as nacionais do Porto, do Dão, dos Verdes e da Madeira, ou ainda do Rioja ou do xerez, de Bordéus, da Borgonha, do Champanhe ou do Cognac, do Barolo, do Chianti ou do Tokay.

Como dizia Braga da Cruz sobre a classificação do Douro como Património Mundial, “… querer afirmar que Vale do Douro tem futuro e que o exigente processo em que envolveu tantas vontades, tem um propósito claro: ser um acto de homenagem, mas sobretudo de justiça. De homenagem a todos aqueles que, durante anos e anos, contribuíram com o seu esforço para o domínio de factores naturais adversos, talhando a majestosa escultura da paisagem duriense. Mas, também um acto de justiça, poder vir a ser um forte impulso para aumentar a expectativa e a esperança daqueles que aí persistem viver e fazer projectos de futuro”.

Da mesma forma que aqui, no Pico, diz-nos Tomaz Duarte e com toda a justiça, “…h+a também uma homenagem muitíssimo legítima a tantos ignorados heróis responsáveis pela nossa mais característica existencialidade; gerações e gerações de camponeses que a poder de braço gravaram uma epopeia quase sem paralelo, ao arquitectar no basalto uma contínua e interminável teia de “canadas” e “currais” onde florescia o “verdelho”.

“Para cultivar mais de 120 quilómetros quadrados de vinhedos, abrigados com paredes, quebrar a pedra, cavar o chão, plantar a vinha, isso foi um trabalho prodigioso”.

É Ricardo Manuel Madruga da Costa que nos diz ainda que “principalmente nos séculos XVIII e XIX, constatamos que o “verdelho” abriu estas ilhas ao circuito mais alargado da economia atlântica, derramando a parte maior dos seus benefícios muito para além dos protagonistas mais próximos da fonte de onde brotava o apreciado vinho “ilha montanha”. De facto, aos homens que o arrancavam das pedras calcinadas do rugoso e labiríntico reticulado dos vinhedos que se espraiam a perder de vista ao longo da faixa da costa rendilhada da “fronteira” ficava reservado o simples jornal para mitigar a sua miséria honrada. E, mesmo assim, só quando o ano era de feição e a colheita permitia augurar boa venda e exportação, capazes de compensar o que sobrava da cobrança do famigerado “subsidio literário” – essa invenção pombalina a favor da instrução de uma mocidade que nesta ilha nunca colheu dela os apregoados benefícios – ou da mais da mais onerosa arrecadação do “dízimo” que iria, muitas vezes, engrossar as fazendas daqueles que, pela intermediação, eram igualmente os bafejados da sorte. Viam, assim, os seus ganhos empolados pelos chorudos lucros do negócio da exportação de vinho, após ser enriquecido e “estufado” nos armazéns da vizinha Horta”.

Desta saga do “verdelho do Pico” cheia de equívocos de naturalidade – a quem o oídio em 1852 e logo depois a filoxera, pôs termo de forma dramática – ficaram as ruínas dos solares e, sobretudo, ficou uma paisagem que nos Açores constituiu o testemunho mais extraordinário do longo processo de humanização destas ilhas. Verdadeiramente peça escultórica, qual obra colectiva de elaboração secular burilada por mãos rudes e calosas, o manto negro da lava em intrincado estendal de quadriculas que se alonga do Lajido a S. Mateus e que a vinha rabisca em tons de verde, constitui notável património e assinala o contributo singular do Homem do Pico na edificação da civilização lusa nesta parte do Atlântico”.

Sob o manto de matos e silvas que vão paulatinamente encobrindo a “paisagem dos muros negros” esconde-se uma das nossas maravilhas a que a presença insólita do “maroiços”, despontando no relevo das encostas atapetadas de verde bravio, empresta tonalidades de mistério com ressonâncias de religiosidade oculta ou rituais herdados de perdidas civilizações.

Não podemos, nós hoje aqui, deixar de partilhar o voto de Tomaz Duarte quando nos diz, “ainda restam alguns, poucos, da “velha guarda”, mas muitíssimo se perdeu do encanto da qualidade de vida da “paisagem cultural” da Vinha do Pico.

Bem no fundo, custa a assistir a tanto abandono e ruína, mas somos dos que acreditam em melhores dias”.


Currais com vinha na ilha do Pico

Como já uma vez disse, aquando da criação da Confraria do Pico, o impasse recentemente criado à candidatura da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico de que a imprensa fez eco, não me restam duvidas, não será mais do que um acidente de percurso; reformulada a candidatura, que, argumentos adicionais não faltarão, e desde que haja vontade politica, não pode a Humanidade deixar de reconhecer-lhe toda a legitimidade para a ostentação de tal galardão. Que só por si, cuidado, não será. Jamais, a “varinha de condão” que tudo vai transformar, nem muito menos poderá ser um produto da “feira de vaidades”, em que a nossa sociedade é por vezes fértil e de alguns apenas procuram tirar proveito próprio; ser Património Mundial não é, em si, um fim, mas apenas e só um meio posto à disposição dos Homens, de homenagem às gerações passadas e ainda para, “com sabedoria e criatividade o picoense triunfar perante as adversidades da natureza, transformando pedra improdutiva no seu modo de sustento, plantando a vinha e protegendo – a dos ventos fortes do rossio do mar, preservando os currais.

Valerá a pena, penso eu, criar ainda mais algumas sinergias a acrescentar a tudo quanto já existe e, para isso, não posso deixar de sugerir, a mais valia que sempre poderia ser importante, da criação de uma Rota do Vinho com a sua Associação de Aderentes, instrumento inovador já em uso em outras Regiões, como forma de dinamizar o enoturismo, ele próprio gerador, por um lado, de receitas extraordinárias, importantes para os viticultores e, para além disso, instrumento de peso para a recuperação e adaptação de todo o vasto património arquitectónico rural que urge preservar.

Finalmente, torna-se ainda essencial conseguir o crescente envolvimento da sociedade civil, através da criação de associações de direito privado que respaldem o empenho publico e sejam a expressão da consciência cívica do Projecto no tempo.

Foi esse o espírito que aqui nos trouxe, o de total solidariedade com a Viticultura Açoriana credora do maior respeito e admiração da Humanidade e é com ele que queremos partir, deixando a estes viticultores dos Açores a certeza de que connosco podem contar.

*Grão-mestre da Confraria da Região Demarcada do Douro.

Congresso de Confrarias Báquicas e Gastronómicas – Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Abril de 2004.

In Revista Verdelho – órgão informativo e cultural da Confraria do Vinho de Verdelho dos Biscoitos. 


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