segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

AS CONFRARIAS BÁQUICAS: sua natureza e função associativa

Por: Geraldo J.A. Coelho Dias, FLUP

Confrades da Confraria do Vinho Verdelho dos Biscoitos e da Die Europäischen Weinritterschaft (Áustria).

Aquilo que os olhos desprevenidos dum leigo, contemplando a variedade das vestes e insígnias das confrarias presentes, poderiam não ver senão como exibicionismo folclórico e exótico, representa, de facto, um contributo generoso para a promoção e valorização do vinho das diversas terras aqui representadas. Como tal, isso faz de cada confraria báquica um símbolo vivo e emblemático da produção vinícola da sua região, uma afirmação positiva da sua integração na realidade do respectivo país. Deste modo, logo à partida, ressalta a mais valia extraordinária que as confrarias Báquicas dão ao secular cultivo da vinha e do vinho, o qual, sendo fruto da terra, da videira e do trabalho do homem, deveras “alegra o coração do homem” (SI.103,15), como diz a Palavra inspirada da Bíblia, ajudando a estabelecer convívio e a muitos garantindo, socialmente, o trabalho e o sustento.

I – A Dimensão sagrada e medicinal do vinho

Confrades do Vinho do Porto, da Colegiada dos Enófilos de S. Vicente e do Vinho Verdelho dos Biscoitos

Na trilogia alimentar básica da Europa Mediterrânica (vinho, trigo e azeite), o vinho era, de facto, uma bebida fortificante, alimentícia, cujo trato e cultivo mereceu ao homem mediterrânico particular interesse e carinho, aliás, a exemplo do que se verificara nas civilizações da Mesopotâmia e do Médio Oriente.

Quem, como a Bíblia, soube transmitir a mensagem da importância do vinho para a vida do homem? Não podemos deixar de trazer aqui à colação aquele emblemático texto do livro do Génese (9,18-27) onde, em aparente anedota etiológica, se faz a defesa do monoteísmo javeista contra a paganizante divinização das forças da natureza e se tenta desmitologizar a origem do vinho, atribuindo-se à inventiva e trabalho do homem. Nesse sentido, a Bíblia da Humanidade, para o reinício dos tempos pós-diluvianos, para o começo Neolítico, quando o homem deixou de ser recolector e se tornou sedentário, agricultor, a história da bebedeira de Noé. O patriarca Noé, salvo do castigo do Dilúvio, terá empreendido para a nova humanidade a tarefa da plantação da vinha. Na alegria da colheita, experimentou, pela primeira vez, os efeitos inebriantes deste delicioso néctar. Apesar da narrativa etiológica do Génese, o Povo de Israel nunca deixou de apreciar o vinho e valorizou-o em múltiplas dimensões, relacionando com a vida, a alimentação, a alegria, a felicidade, o prazer, tomando como sinal religioso da Aliança de Deus com o Seu Povo e símbolo da alegria do banquete escatológico. Para o homem bíblico, a idílica expressão “habitar debaixo da vinha” (Mq. 4,4; Zc. 3, 10; 1 Re, 5,5; 1Mecb. 14,12) com uma “mulher fecunda” (SI. 127,3, era símbolo premonitório de felicidade e de paz! O cristão não se afastou desta visão quase sagrada do vinho e Jesus elevou-o a elemento sacramental para que o sacrifício do seu sangue se perpetuasse em rito de eterno memorial (Mt. 26, 27-28).

Confrades da Genootschap van Wijnvrienden (Holanda)

Não é, por isso, de admirar que algumas religiões atribuíssem aos deuses a origem do vinho que sustenta, cura e alegra o homem. Assim, para os gregos, Dionísio era o deus do vinho e, para os romanos, lá estava o deus Baco, prazenteiro e folgazão, inebriado com os etílicos aromas e deliciosos sabores do vinho, convidando os mortais para uma experiência gustativa. Em Roma, a aproximação do culto de Baco aos mistérios de Dionísio levou a excessos de licenciosidade e subversão, degenerando nas chamadas orgias de fraternidade e amor. Por razões, morais, religiosas e políticas, um senato-consulto de 186 A. C. proibiu as festas bacanais (Tito Lívio – Ab Urbe condita, XXXIX, 8, 3-19,7). Desde então, o culto de Baco ficou conotado com erotismo e subversão moral e social, o que, naturalmente, veio adulterar a imagem e o culto inicial deste deus do panteão romano, mas sem conseguir diminuir o apreço que os romanos tinham pelo vinho.
Os romanos conheciam um verdadeiro ciclo do vinho com as festas respectivas. Em meados de Agosto, a 19, por altura das vindimas, celebravam as VINALIA RUSTICA, associando o culto de Júpiter, fonte de todo o bem, a Vénus deusa do amor e da alegria. A 11 de Outubro festejavam as MEDITRINALIA, quando se provava o vinho novo e se armazenava em grandes vasilhas chamadas “dolia” e ânforas. Depois, a 23 de Abril, celebravam as VINALIA PRIORA, festas das primícias do vinho em honra de Júpiter.

Foram os romanos, sem dúvida, quem mais desenvolveu o cultivo e a técnica de fabricação e conservação do vinho. Ninguém melhor do que eles saboreou o vinho no que ele tem de prazer e de regalo; ninguém como eles explorou e estudou o carácter medicinal e curativo do vinho.

(continua)

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